quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Resignificação do conceito filosófico em Nietzsche*


O conjunto da obra de Nietzsche é usualmente caracterizado como uma crítica aos fundamentos da cultura européia, sobretudo da Alemanha do século XIX. O sentido de seu esforço se traduz na recuperação da potencialidade vital que teria sido seqüestrada pelos sistemas de pensamento até então dominantes. Em especial, torna arenoso e movediço o terreno filosófico, sobre o qual repousaram os sistemas platônico, cristão e iluminista na filosofia ocidental. Promove uma revalorização e reinterpretação das origens conhecidas da tragédia grega; para tanto, resgata antigas lições dos poetas trágicos gregos.
A questão da obra de arte trágica grega terá um papel importantíssimo para a filosofia nietzschiana. Machado (2002, p. 17) sugere que o ponto de partida da reflexão de Nietzsche sobre a arte na Grécia se encontra na correlação entre uma sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma extraordinária sensibilidade artística que caracteriza os gregos e que se explica pela força de seus instintos. Nesse sentido, podemos dizer que a trajetória do seu pensamento se movimenta entre o apolíneo e o dionisíaco .
Conforme o que observa Machado (2002, p. 21), Nietzsche não está propriamente interessado em renovar e modificar conceitos da filosofia, seu objetivo diz respeito a “[...] libertar a palavra da universalidade do conceito, construindo um pensamento filosófico através da palavra poética [...]”. O projeto nietzschiano é fazer a escrita atingir a perfeição da música; significa, por exemplo, considerar Zaratustra um canto musical, pela musicalidade da palavra (MACHADO, 2002, p. 25).
De acordo com Pinto (1987, p. 34-35), em Nietzsche, a verdadeira sabedoria tem de passar pela redescoberta do dionisíaco. O apolíneo e o dionisíaco são conceitos estéticos e metafísicos, ilustrados, respectivamente, pelas metáforas de figura e de música, com as imagens do sonho e da embriaguez. O apolíneo e o dionisíaco são instintos estéticos. Nietzsche encontra neles os princípios metafísicos do mundo. Ele também vê a arte como fenômeno cósmico e como via de acesso à verdadeira realidade. Esses instintos lutam entre si, mas um não existe sem o outro, sendo em grande medida complementares.
A forma artística de Nietzsche se expressar parece ser adequada aos objetivos de sua filosofia: “[...] a proposta nietzschiana [...] se direciona contra a rigidez do conceito, pois o conceito sendo rígido, abstrato e genérico não dá conta da vida que é fluxo ininterrupto e constante, eterno.” (CUNHA, 2003, p. 26). Além de melhor captar a dinamicidade e fluidez da vida, essa modalidade de expressão poética contempla a ambigüidade, o complexo, não empreendendo reduções, simplificações ou limites por demais castradores.

[...] só o poético diz o devir, por captar o ritmo dinâmico do universo conciliando a ambigüidade no interior do seu sistema. No mito e na poesia, por exemplo, os contrários não são contraditórios mas, sim, complementares, perfazendo uma lógica da ambigüidade ou do paradoxo. (CUNHA, 2003, p. 26).

Halis e Cunha (2004, p. 5) afirmam que a forma de escrita sugere, de Nietzsche, a preferência em libertar o leitor de conceitos herméticos, ampliando-lhe a possibilidade de ter novas idéias a partir das suas. Talvez, a importância da obra de Nietzsche esteja nisso: não na tentativa de descobrir o sentido “verdadeiro”, único, correto ou absoluto de suas palavras, mas na turbulência, no desconforto da comodidade (gerada pelas convenções arraigadas), enfim, na ampliação do potencial de se ter continuamente novas idéias. Resgatando, ainda, as observações de Cunha, salientamos que:

[...] Nietzsche defende um outro tipo de imagem do pensamento, em que não há dualidade, cisão, transcendência, afirmando o sensível, a aparência e o jogo ilusionista da vida, [...] daí sua postura se engajar em um projeto de demolição da metafísica Ocidental. Essa vontade negativa de potência, porquanto negadora da vida em nome de um sistema abstrato, lógico, intelectual é reativa, assegurando a hegemonia do “espírito de vingança” sobre o escoamento do devir. (CUNHA, 2003, p. 32).

Isso é coerente com o assalto que Nietzsche promove aos conceitos universais e absolutos. O “ser” deve ser deslocado em nome do “tudo veio, e vem, a ser”. Nietzsche não opera com supostos fatos, mas apenas com interpretações deles, como já apontamos. Essa modalidade de abordagem envolve o chamado perspectivismo, no qual as idéias de “substância” e de “corpos” são dissolvidas, optando-se por trabalhar com “forças conceituais” – que não é um conceito rigidamente delimitado, até porque isso seria prejudicial segundo a perspectiva nietzschiana, pelas razões já mencionadas. Por isso:

[...] a trama conceitual nas obras de Nietzsche surge como efeito poético do movimento da obra, compondo um tecido extremamente complexo, por vezes paradoxal, de difícil leitura, uma vez que o autor lê e relê o seu próprio pensamento em diversos níveis, perspectivas múltiplas, apresentando caminhos e descaminhos imbricados uns nos outros, tendo o leitor que recolher aqui e ali os elementos que irão compor o conjunto da obra. Cabe ressaltar que o fato de o autor privilegiar a escrita poética não invalida a prática conceitual própria ao pensamento filosófico. Os dois movimentos perfazem um todo na obra do filósofo. (CUNHA, 2003, p. 4).

Além disso, as forças conceituais são definidas em função de suas relações umas com as outras, em razão de um “jogo do acaso” que as integra ou dispersa. No perspectivismo nietzschiano, não só o ser humano, mas cada centro de força avalia e reconstrói todo o resto do universo a partir de si mesmo. Os modelos, os formatos e dimensões do cosmos são proporcionais à própria “força”. Nesse sentido, ao conceito, uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se e depois encontrar-se. Cunha acentua que “[...] a filosofia de Nietzsche se caracteriza por ser uma filosofia capaz de libertar a potência criativa do pensamento, subvertendo os modos de expressão filosóficos e científicos até então concebidos, trazendo para esses discursos o aforismo e o poema.” (CUNHA, 2003, p. 3).

Referências

CUNHA, Maria Helena Lisboa da. Nietzsche: espírito artístico. Londrina: Cefil, 2003.
HALIS, Denis de Castro; CUNHA, Maria Helena Lisboa da. O problema do conhecimento em Nietzsche. 30 nov. 2004. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2007.
HERMANN, Nadja. Pluralidade e ética em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
______. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução: Mário da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
______. Gaia Ciência. In: Obras incompletas. São Paulo: Abril, 1978a.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. Humano, demasiado humano. In: Obras incompletas. São Paulo: Abril, 1978b.
OLIVEIRA, Nythamar F. de. Tractatus ethico-politcus: genealogia do ethos moderno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
PINTO, Maria José Vaz. A filosofia na idade trágica dos gregos: da sabedoria dos filósofos trágicos à inversão do socratismo. In: MARQUES, António (Org.). Nietzsche: cem anos após o projecto Vontade de Poder – transmutação de todos os valores. Lisboa: Vega, 1987.

*Texto parcial do artigo: "ARTE E FILOSOFIA: PARA ALÉM DO CONCEITO EM NIETZSCHE" publicado na Revista "Visão Global" da UNOESC.

2 comentários:

Pedro Fermi disse...

Que texto bom! Muito explicativo. Muito obrigado e parabéns!

Pedro Fermi disse...

Que texto bom! Muito explicativo. Muito obrigado e parabéns!